quarta-feira, 12 de março de 2014

FRATERNIDADE E TRÁFICO HUMANO


JORNAL DO COMÉRCIO. Coluna publicada em 06/03/2014


DOM JAIME SPENGLER

A voz do Pastor



Estamos iniciando mais um tempo quaresmal. Durante este tempo, queremos refletir mais intensamente sobre a tragédia do tráfico humano.

Já se vão muitos anos desde quando a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) vem propondo à comunidade eclesial a celebração da Campanha da Fraternidade, durante este período da Quaresma, qual itinerário de libertação pessoal, comunitária e social. Os tradicionais exercícios quaresmais – jejum, oração e esmola – querem nos conduzir ao encontro d’Aquele que é a plenitude da vida; ao encontro com Aquele que é a luz, o caminho, a verdade e a vida de toda pessoa que vem a este mundo. O jejum é antes de tudo renúncia, esvaziamento, expropriação, tentativa de deixar-se atingir pela graça da liberdade que Cristo nos trouxe. A oração é empenho de exposição de quem espera ser atingido pela bondade e misericórdia d’Aquele que nos amou desde sempre. A esmola é expressão de solidariedade; decisão de sair de si mesmo, para deixar-se tocar pela presença do outro, particularmente o mais necessitado, o mais pobre.

Firmes nos exercícios quaresmais que a tradição nos legou, somos convidados a dar atenção especial a uma das chagas de nosso tempo: o tráfico humano. Não se trata de um fenômeno social novo. Ele é tão antigo quanto a própria história da humanidade. O que talvez seja novo são as conotações. Tal drama humano produz tanto sofrimento! Não podemos permanecer indiferentes diante desta tragédia.

A Campanha da Fraternidade deste ano tem como objetivo geral identificar as práticas de tráfico humano em suas várias formas e denunciá-lo como violação da dignidade e da liberdade humana, mobilizando cristãos e a sociedade brasileira para erradicar esse mal, com vista ao resgate da vida dos filhos e das filhas de Deus. E tem como objetivos específicos identificar as causas e modalidades do tráfico humano e os rostos que sofrem com essa exploração; denunciar as estruturas e situações causadoras do tráfico humano; reivindicar, dos poderes públicos, políticas e meios para a reinserção das pessoas atingidas pelo tráfico humano na vida familiar e social; promover ações de prevenção e de resgate da cidadania das pessoas em situação de tráfico; suscitar, à luz da palavra de Deus, a conversão que conduza ao empenho transformador dessa realidade aviltante da pessoa humana; celebrar o mistério da morte e ressurreição de Jesus Cristo, sensibilizando para a solidariedade e o cuidado às vítimas desse mal.

No Evangelho de Marcos, Jesus afirma que existe uma espécie de espírito que só pode ser expulso por meio da oração (cf. Mc 9, 29). Poderíamos, talvez, parafrasear a expressão de Jesus e dizer que o espírito que sustenta a ferida humana e social do tráfico humano só pode ser sanada através da oração, do jejum e da caridade. Caridade aqui entendida como empenho pessoal e social na busca de indicações objetivas para que tamanho mal seja erradicado do seio da sociedade humana.

O tráfico humano é expressão contundente do cerceamento da liberdade humana, e de desprezo descarado à dignidade dos filhos e das filhas de Deus. Tudo aquilo que impede ou cerceia a liberdade desfigura o homem e a mulher, criados à “imagem e semelhança de Deus”. Podemos certamente dizer que o tráfico humano é uma das modalidades atuais de escravidão. É verdade que já se passaram quase 126 anos da proclamação da libertação dos escravos. Mas é também verdade que se podem constatar várias situações Brasil afora, onde o trabalho escravo continua sendo uma prática comum. E o tráfico humano é uma forma violenta, indigna, cruel e maldita de escravidão.

Neste contexto, talvez seja oportuno recordar o que Papa Francisco disse em Lampedusa, no Sul da Itália, no dia 8 de julho de 2013 : “A cultura do bem-estar, que nos leva a pensar em nós mesmos, torna-nos insensíveis aos gritos dos outros, faz-nos viver como se fôssemos bolas de sabão: estas são bonitas, mas não são nada, são pura ilusão do fútil, do provisório. Esta cultura do bem-estar leva à indiferença a respeito dos outros; antes, leva à globalização da indiferença. Neste mundo da globalização, caímos na globalização da indiferença. Habituamo-nos ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é responsabilidade nossa!”

Oxalá, possa este tempo quaresmal nos ajudar a não cair na indiferença e a colaborar para que este drama humano possa ser erradicado de nosso meio.

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